Chuva junina
O domingo passado acordou numa malemolência indolente. As nuvens, azuis e recendendo a inverno prolongado, encobriram o sol, como a nos lembrar que era dia de preguiça, de ficar na cama até um pouco mais tarde.
Em dias assim, dá-me uma vontade danada de cometer malandrices. Nada das grandes faltas, apenas o desleixo ocasional e fortuito, a graça do tempo livre, sem lembranças do reinado do relógio. Explicarei melhor.
Com a chuva fina, brota em nós um laivo de poeta. Compulsão de pôr em páginas floridas um arremedo de poema romântico, falando de amores trágicos, alcovas indevassáveis, donzelas de voz canora, e coisa e tal.
Versos que pulsariam na alma incontida, tocada por uma manhã lavada, limpa e prazerosa. Pouco importa a qualidade das estrofes (em manhãs de junho, me parece, ninguém almeja a fama), mas a boa-fé que move o pretenso menestrel da paixão.
Em domingos banhados pela mansuetude de uma invernia estranhamente espichada, os casais bem que poderiam flanar pelas ruas. Sairiam de braços dados, a receberem, em seus rostos marcados pela rotina, os pingos da chuva rala que lavariam o ar, as ruas, os homens, as crianças e as mulheres. Enfim, toda a cidade. Ao final da tarde, quando o sol que não chegou anunciasse a sua pálida despedida, encontraria os enamorados a desfilarem um amor limpo pelas praças floradas.
Outra coisa que poderia ocorrer em domingos desse tipo seria os homens de negócio vestirem calções de banho, aposentando as roupas formais, e receberem a bênção de um demorado banho de bica. Em banhos que trazem, em enxurradas, os aguaceiros da infância. Tais catadupas molham o corpo, além, em benfazejo jorro de memória, de nos enxaguarem o espírito. Ao concluirmos a prática desta terapia-do-banho-de-chuva-aos-domingos, os lábios seriam vistos como se germinados pela sementeira do sorriso dos eleitos.
Pensei também em cometer a sublime arte de responder a toda e qualquer pergunta que me dirigissem com outras perguntas. Voltando a praticar a augusta filosofia da meninice. Nós, adultos, ao envelhecermos, cometemos a insânia de abandonarmos tal engenho, e passamos a nos iludir com a busca do âmago da vida nas respostas, nas ditas afirmações.
No meio do dia, bem sei, me invadiria uma vontade de fugir para o destino mais incerto, com a minha Biscuí, e não ter hora nem plano para chegar, muito menos para voltar. Lá, procuraríamos um casarão bem antigo, onde ficaríamos enamorados numa rede de balanço, de olhos postos nos caibros e ripas, a ouvirmos o barulho encantador da chuvarada nas telhas-vãs.
Domingo de junho com chuva no Nordeste, meu caro leitor, me leva a conjecturas mil, a planos imponderáveis. Como almoço, o melhor seria me servir de um peixe fresco, apanhado pela rede do pescador mais afoito.
Daqueles que se encantam com as graças do mar, e fazem do seu ofício a colheita do sagrado segredo das ondas, que vêm e vão, e não se cansam de render tributo à praia, apesar da indiferença dos homens e dos rochedos.
Como sobremesa, o doce em compota mais doce, daqueles há tempo proibidos e banidos pelos códigos dos regimes de emagrecimento, verdadeiros atentados contra a alma e a carne fraca dos pobres comensais. Lambuzados, riríamos da nossa gula, e professaríamos nossa falta aos goles de uma caneca d’água da quartinha, dormida e serenada, e, por conseguinte, a mais pura e fria.
É claro que, depois, dormiríamos uma sesta dos deuses. Daquelas desprovidas de segundas responsabilidades, apenas o corpo abandonado ao sabor da moleza que nos impõe uma refeição fausta. E roncaríamos. Sim, roncaríamos. Nada expressa melhor a qualidade e a profundidade de uma sesta do que o nível dos decibéis gerados por quem a ela, abençoadamente, se entrega.
No meio da tarde, a chuva a pinicar lembranças e pachorra no nosso corpo lasso, tomaríamos um café donzelo, em canecas de ágata, adoçado com rapadura. Acompanhado de um cuscuz fresquinho, ou, no máximo, de uma tapioca de receita cearense. Sem nos esquecermos da manteiga, que fique aqui o registro. Terminada a refeição, com alguns quilos a mais na balança, e um crédito suplementar de felicidade no juízo, tocaríamos para uma rede na varanda. Lá, espiaríamos o canto do bem-te-vi, em contralto, aparteado de quando em vez por um galo-de-campina, daqueles da cabeça de fita bem vermelha, como saudávamos quando eu criança na longínqua e querida Licânia. É lógico que não haveria espaço para os intrometidos e metidos pardais. A eles, pelo menos por um domingo, pediríamos trégua. E, por eles, seríamos atendidos.
Quando a noite caísse com a sua imensidão e os seus sortilégios, o coaxar dos sapos nos traria as imagens dos príncipes dos contos de fada. Em cada um deles, nada dos batráquios, mas, sim, a latência de um novo principado.
A chuva, persistente, ainda nos daria tempo para uma seresta em noite chuvosa, dessas cantadas pela voz interior, molhadas pelas lágrimas do adeus, acompanhadas pelo violão mais plangente, e benditas pela saudade.
O sono se achegaria em passos miúdos, os casais se enamorariam, dormindo candidamente; e a madrugada prosseguiria, como se infinita, regada pela dádiva de uma chuva junina.
Eu sei que a segunda-feira, com os seus compromissos insípidos e inadiáveis, viria. Mas um domingo assim nos encanta com a utopia de uma felicidade eterna, e como.
Clauder Arcanjo — Professor – clauder@pedagogiadagestao.com.br